‘Fragmentos de um povo’: divisor de águas

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Algumas experiências são definitivas na vida da gente. Servem para abrir-nos os olhos, estabelecer paradigmas e derrubar alguns outros. E, às vezes, servem para nos impor um caminho, uma missão. Para Erick Mem, a epifania ganhou o nome de Fragmentos de um povo, projeto de documentação das condições dos extratos menos favorecidos da população brasileira, ao qual ele se lançou após participar de um documentário produzido pela União Europeia.

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Erick Mem foi da publicidade à fotografia de causas sociais (foto: Claudio Sartor)

A UE contratou uma equipe para mostrar os projetos assistenciais que a organização apoia no país. O fotógrafo de 32 anos, natural de Guaratinguetá (SP), foi integrado ao grupo, que em junho de 2011 percorreu comunidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Ceará, Pernambuco e do Piauí.

Encerrado o trabalho – de cujo desfecho Erick não tem notícia, se o vídeo já foi veiculado ou não, e para qual público (talvez circule apenas entre membros da delegação da UE aqui no Brasil, ouviu falar) – ele voltou para seu apartamento, em São José no Rio Preto, no interior de São Paulo, remoendo tudo o que viu.

“Fiquei com a sensação de dever não cumprido”, refletiu o fotógrafo, que no período de um mês visitou edifícios ocupados por moradores sem-teto em São Paulo, morros do Rio, uma favela de Salvador onde vivem gerações de catadores de lixo, conheceu Maria da Penha em Fortaleza, cujo drama deu origem à lei homônima que tenta frear a violência doméstica no Brasil, e esteve com quilombolas no Sertão do Pernambuco. Disso tudo resultou um acervo de 4 mil imagens que, ele raciocinou, não deveria ficar encerrado em seu PC.

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Na verdade, poderiam ser mais imagens, se ele não tivesse passado por uma boa no Rio. “Nesse dia, eu e a equipe do documentário havíamos chegado no Complexo do Alemão, mais precisamente no Morro da Baiana, por volta das 8 da manhã”, conta Erick. “Fomos até o projeto que a UE apoiava no morro e, como iríamos passar o dia lá, conversamos com o líder do projeto, que disse que tínhamos a autorização do ‘poder local’, ou seja, dos traficantes, para passarmos o dia andando e conhecendo toda a comunidade”.

A certa altura, Erick se perdeu do grupo. Continuou a perambular pela comunidade e a fotografar. Já no fim do dia, esperando pela equipe que iria buscá-lo, foi abordado por três sujeitos armados e ouviu o característico “perdeu! Passa a câmera!”. Ele ainda tentou argumentar, mas uma “cutucada” com o cano do revólver na testa resolveu a questão: lá se foram o equipamento e todas as fotos do dia.

“Mas o que tornou esse episódio ainda mais incrível foi a aparição de mais duas pessoas armadas depois do assalto, me perguntando dos bandidos. Eu falei o carro e eles foram na captura dos sujeitos. Nesse meio tempo, tentava ligar para o pessoal que estava no projeto do Alemão, mas ninguém atendia. Foi quando comecei a ouvir tiros e corri para um boteco. Passados alguns segundos, me ligaram do projeto, desesperados e perguntando se eu estava bem, pois o meu flash 580 EXII mais um radioflash da PocketWizard haviam sido jogados no rosto do cinegrafista da equipe por um marginal que estava tentando levar a Doblò, que era o carro que tínhamos alugado no Rio de Janeiro. Agora, o que nos deixou ainda mais surpreendidos foi o fato de que aqueles dois sujeitos armados, que me abordaram após o assalto e possivelmente eram traficantes locais, nos salvaram de tomarmos ainda mais prejuízo, pois foram eles que espantaram, lá do galpão, os mesmos bandidos que me assaltaram e queriam levar nosso carro”.

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Com uma câmera de menos e um pouco mais escolado sobre como fotografar em lugares pouco seguros, Erick e o grupo (todos ilesos) seguiram viagem. Quando chegaram à Bahia, um equipamento de reserva já o esperava no hotel, encomendado de um contato em São Paulo: “Os ‘brinquedos’ foram enviados por Sedex. Meio arriscado… mas deu tudo certo”, brinca.

Por tudo isso, o paulista decidiu instituir o Fragmentos de um povo, a sua visão de como o sistema engole quem não acha lugar em sua linha de produção: “O nosso sistema econômico, baseado no dinheiro, força a escassez para que as coisas tenham valor financeiro e para sustentar tudo isso é preciso que exista um ciclo de produção interminável, onde tudo é produzido com certa obsolescência programada e, assim, o planeta sucumbe com o aval de toda a população global”, observa.

Ele fez uma edição e selecionou 250 imagens. Destas, umas 30 circularam em exposições pelo interior de São Paulo. Erick espera realizar mais. “Minha meta agora é visitar algumas áreas indígenas do nosso país, pois suponho que estejam com os dias contados. Com esse projeto, criei mais um sonho em minha vida, que é a produção de um livro”. Para Erick, que antes disso fotografava publicidade e moda, a experiência serviu como divisor de águas: “Suponho que tenha surgido para dividir a minha vida profissional em duas partes, antes e depois do Fragmentos de um povo”. Ou seja, não há mais como voltar atrás.

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