Fotojornalismo contra a descrença

No e-mail que escrevi a Alcyr Cavalcanti, comentei sobre ter lido, em mais de uma oportunidade, depoimentos de jornalistas lembrando quando quase morreram no exercício da profissão, em plantões nos morros cariocas. “Eu e o fotojornalista Alcyr Cavalcanti”, diziam.

Foto: Alcyr Cavalcanti
Crianças brincam com arma de verdade na Rocinha

Natural de Marechal Hermes (RJ), Alcyr é um veterano de muitas redações. De fato, já subiu muito morro em busca de imagens e notícias que, humanista, preferiria não dar. Ossos do ofício. Está, inclusive, com uma exposição no Centro Cultural Justiça Federal sobre a Rocinha. Ainda planeja um livro ou um documentário em vídeo sobre a favela e a questão da violência urbana. Mestre em antropologia, ele acredita que, em relação a isso, “alguma coisa mudou, mas muita coisa permanece como está”.

Essa relação se inverte quando se trata do jornalismo. Alcyr construiu uma carreira de 40 anos, passou diversos jornais, por todas as editorias possíveis, brigou com patrões em favor da categoria e hoje, como membro da Associação dos Repórteres Fotográficos e Cinematográficos do Rio de Janeiro (Arfoc-RJ) e da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), não encontra muita coisa positiva nas mudanças da profissão. “A fotografia muitas vezes não é mais encarada como documento histórico, a velocidade exigida na transmissão das imagens não corresponde à situação real, mas satisfaz aos veículos que querem fechar suas edições de qualquer jeito”, afirma.

Sobre esse assunto, Alcyr Cavalcanti tem muito a dizer. Acompanhe seu raciocínio na entrevista a seguir:

Fica difícil listar a quantidade de jornais para os quais você trabalhou. Foram mais de 30 anos de carreira, não? Quando foi que você decidiu se tornar fotógrafo de jornal e como isso ocorreu?

Comecei a me interessar em definitivo por fotografia ao fazer curso de cinema (direção cinematográfica) no Museu de Arte Moderna no Rio, em 1968. Havia aulas de fotografia durante o curso de um ano. Na época, eu tinha uma câmera de filmar e resolvi aprofundar nos mistérios das imagens, era um fanático por cinema. Passei a fotografar tudo, em todos os momentos que podia, e para manter os custos vi que teria que me profissionalizar. Após um breve estágio na agência United Press International (UPI), onde eu ficava tentando publicar alguma coisa, passei a vender as fotos para o jornal O Fluminense em Niterói, cidade em que residia. Após a passagem pelo Fluminense, fui chamado para o Correio da Manhã, jornal em declínio, mas com grande prestígio, cuja editora publicava também o Última Hora. Passei a ficar conhecido como profissional e daí passei por vários jornais e revistas, e também como freelancer das agências internacionais France Presse e Associated Press. Queria assinalar minha passagem pelo Jornal do Brasil (1987/1988 e 1990/1994), onde trabalhei com dois grandes editores, Alberto Ferreira, na primeira vez, e Rogério Reis, de 90 em diante. Alberto foi seguramente o maior editor de fotografia que o Brasil já teve, e agradeço o privilégio de ter trabalhado com ele. Tive também pequena experiência como editor nos jornais Diário de Notícias e Tribuna da Imprensa. No primeiro, saí por dirigir uma greve e uma demissão de todo o departamento. Todos nos recusamos a trabalhar e fomos demitidos e ameaçados de sermos inclusos na Lei de Segurança Nacional, estávamos em plena ditadura militar. Na Tribuna, fui destituído da chefia por ter pedido aumento para toda a equipe. Fiquei somente como fotógrafo.

Foram várias editorias nas quais trabalhou. Com qual você mais se identificava?

Trabalhei em várias editorias ao longo de minha trajetória: cidades, moda, coluna social, reportagem policial, esportes, política (incluindo aí economia), segundo caderno e o que viesse para fotografar. Fiz durante um tempo o estilo paparazzo, à cata de celebridades. Os bons fotógrafos de minha época eram capazes de trabalhar em qualquer situação. O compromisso era trazer uma boa foto.

Com relação à sua formação como antropólogo, de que maneira você a relaciona com o trabalho de fotojornalista?

Acredito que antropologia me abriu novos horizontes, proporcionando uma maior visão dos hábitos, das culturas diversas e ajudando a ter uma maior compreensão e aceitação do outro, do nosso semelhante, e assim ter maior responsabilidade na produção de imagens, mostrando a vida como ela é, sem filtragens, sem Photoshop, infelizmente não como ela deveria ser, sem miséria, sem conflitos, e acreditando que um dia as coisas possam ser bem melhores. Em recente debate, respondi que não era pessimista, mas pensava à maneira de Edgar Morin, “buscando esperança na desesperança”.

Como você vê as mudanças que têm ocorrido no fotojornalismo, com a convergência de tecnologias, coletivos fotográficos, a velocidade da informação, mais pessoas fotografando etc?

Foto: Divulgação/Arfoc
Alcyr Cavalcanti (esq.) com o fotógrafo francês Yann Arthus-Bertrand: crise do capital afetou as redações

A fotografia, em especial o fotojornalismo, sofreu profundas mudanças ao longo das décadas, acompanhando as mudanças da economia, pela crise do capitalismo. Algumas profissões foram extintas, como o laboratorista, o operador de telefoto, vários jornais deixaram de circular, o que diminuiu em muito as frentes de trabalho. Passa a haver um acúmulo de funções em decorrência da chamada convergência tecnológica, e fusão de empresas e concentração da mídia em alguns grupos, causando demissões em massa. Só para dar exemplo, o Jornal do Brasil teve equipe de mais de 30 fotógrafos e O Globo mais de 50. O Dia mantém equipe mínima, embora a editora explore três jornais. Algumas agências vendem fotos a preço vil, extremamente baixo, desvalorizando o trabalho de um bom fotojornalista, que investe alguns milhares de reais em seu equipamento, e os editores aceitam porque o que interessa a eles é fechar a edição com qualquer coisa. Estão em busca do “tempo real”. A crise do capital traz em seu bojo uma série de procedimentos que mascaram a realidade em prejuízo daqueles que de fato “correm atrás da notícia”, sabem que cumprem um papel importante no registro das situações sociais do dia a dia. A fotografia muitas vezes não é mais encarada como documento histórico, a velocidade exigida na transmissão das imagens não corresponde à situação real, mas satisfaz aos veículos que querem fechar suas edições de qualquer jeito. O número de fotos sem expressão é imenso, é uma exigência da “era da velocidade”, com o beneplácito dos editores, que funcionam apenas como prepostos do patronato. Dentro desse raciocínio, qualquer coisa serve para ocupar o espaço da página. É um dos dilemas enfrentados pelo fotógrafo que ainda busca a verdade por trás das aparências. Daí a necessidade de câmeras que fazem milhares de cliques, com mecanismo ultrassofisticado. A busca pelo instante fugidio que não se repete fica em segundo plano. A decadência das agências fotográficas veio em decorrência da crise do capital, tornando as mídias em “fábricas de notícias”, visando não à informação – um bem essencial – mas somente a relação custo/benefício. Em consequência, vieram cada vez mais potentes as publicações que cobrem o dia a dia das celebridades, a vida alheia, e o desinteresse pelas “hot news” aumentando o número de paparazzi mal remunerados.

 “Algumas agências vendem fotos a preço vil, extremamente baixo, desvalorizando o trabalho de um bom fotojornalista, que investe alguns milhares de reais em seu equipamento, e os editores aceitam porque o que interessa a eles é fechar a edição com qualquer coisa”

Volta e meia se ouve falar em “fim do fotojornalismo”, um cenário bastante pessimista, por sinal. O que você pensa disso?

As novas tecnologias vieram para ficar, são inerentes à fase atual do capitalismo, mas trazem em seu bojo, infelizmente, o lado perverso que interessa aos “editores” dos departamentos fotográficos, que perderam a autonomia, e dos que chefiam as redações, e têm apenas a função de “tampar os buracos das páginas”. Eventualmente vemos ensaios fotográficos relativos a pautas de interesse dos donos das mídias, mas que trazem embutidos interesses ocultados. O fotojornalismo não morreu, está mais vivo do que nunca, mas somente na mão, na mente e na vontade de alguns verdadeiros fotojornalistas que ainda dão sua vida, sua energia pela notícia, sabendo que suas imagens ficarão para sempre, para serem julgadas pela História. Cada fotografia conta uma história, mas deve estar sempre próxima do real. Daí a responsabilidade de quem está por trás das câmeras.

Foto: Alcyr Cavalcanti

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Fotojornalismo contra a descrença

No e-mail que escrevi a Alcyr Cavalcanti, comentei sobre ter lido, em mais de uma oportunidade, depoimentos de jornalistas lembrando quando quase morreram no exercício da profissão, em plantões nos morros cariocas. “Eu e o fotojornalista Alcyr Cavalcanti”, diziam.

Foto: Alcyr Cavalcanti
Crianças brincam com arma de verdade na Rocinha

Natural de Marechal Hermes (RJ), Alcyr é um veterano de muitas redações. De fato, já subiu muito morro em busca de imagens e notícias que, humanista, preferiria não dar. Ossos do ofício. Está, inclusive, com uma exposição no Centro Cultural Justiça Federal sobre a Rocinha. Ainda planeja um livro ou um documentário em vídeo sobre a favela e a questão da violência urbana. Mestre em antropologia, ele acredita que, em relação a isso, “alguma coisa mudou, mas muita coisa permanece como está”.

Essa relação se inverte quando se trata do jornalismo. Alcyr construiu uma carreira de 40 anos, passou diversos jornais, por todas as editorias possíveis, brigou com patrões em favor da categoria e hoje, como membro da Associação dos Repórteres Fotográficos e Cinematográficos do Rio de Janeiro (Arfoc-RJ) e da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), não encontra muita coisa positiva nas mudanças da profissão. “A fotografia muitas vezes não é mais encarada como documento histórico, a velocidade exigida na transmissão das imagens não corresponde à situação real, mas satisfaz aos veículos que querem fechar suas edições de qualquer jeito”, afirma.

Sobre esse assunto, Alcyr Cavalcanti tem muito a dizer. Acompanhe seu raciocínio na entrevista a seguir:

Fica difícil listar a quantidade de jornais para os quais você trabalhou. Foram mais de 30 anos de carreira, não? Quando foi que você decidiu se tornar fotógrafo de jornal e como isso ocorreu?

Comecei a me interessar em definitivo por fotografia ao fazer curso de cinema (direção cinematográfica) no Museu de Arte Moderna no Rio, em 1968. Havia aulas de fotografia durante o curso de um ano. Na época, eu tinha uma câmera de filmar e resolvi aprofundar nos mistérios das imagens, era um fanático por cinema. Passei a fotografar tudo, em todos os momentos que podia, e para manter os custos vi que teria que me profissionalizar. Após um breve estágio na agência United Press International (UPI), onde eu ficava tentando publicar alguma coisa, passei a vender as fotos para o jornal O Fluminense em Niterói, cidade em que residia. Após a passagem pelo Fluminense, fui chamado para o Correio da Manhã, jornal em declínio, mas com grande prestígio, cuja editora publicava também o Última Hora. Passei a ficar conhecido como profissional e daí passei por vários jornais e revistas, e também como freelancer das agências internacionais France Presse e Associated Press. Queria assinalar minha passagem pelo Jornal do Brasil (1987/1988 e 1990/1994), onde trabalhei com dois grandes editores, Alberto Ferreira, na primeira vez, e Rogério Reis, de 90 em diante. Alberto foi seguramente o maior editor de fotografia que o Brasil já teve, e agradeço o privilégio de ter trabalhado com ele. Tive também pequena experiência como editor nos jornais Diário de Notícias e Tribuna da Imprensa. No primeiro, saí por dirigir uma greve e uma demissão de todo o departamento. Todos nos recusamos a trabalhar e fomos demitidos e ameaçados de sermos inclusos na Lei de Segurança Nacional, estávamos em plena ditadura militar. Na Tribuna, fui destituído da chefia por ter pedido aumento para toda a equipe. Fiquei somente como fotógrafo.

Foram várias editorias nas quais trabalhou. Com qual você mais se identificava?

Trabalhei em várias editorias ao longo de minha trajetória: cidades, moda, coluna social, reportagem policial, esportes, política (incluindo aí economia), segundo caderno e o que viesse para fotografar. Fiz durante um tempo o estilo paparazzo, à cata de celebridades. Os bons fotógrafos de minha época eram capazes de trabalhar em qualquer situação. O compromisso era trazer uma boa foto.

Com relação à sua formação como antropólogo, de que maneira você a relaciona com o trabalho de fotojornalista?

Acredito que antropologia me abriu novos horizontes, proporcionando uma maior visão dos hábitos, das culturas diversas e ajudando a ter uma maior compreensão e aceitação do outro, do nosso semelhante, e assim ter maior responsabilidade na produção de imagens, mostrando a vida como ela é, sem filtragens, sem Photoshop, infelizmente não como ela deveria ser, sem miséria, sem conflitos, e acreditando que um dia as coisas possam ser bem melhores. Em recente debate, respondi que não era pessimista, mas pensava à maneira de Edgar Morin, “buscando esperança na desesperança”.

Como você vê as mudanças que têm ocorrido no fotojornalismo, com a convergência de tecnologias, coletivos fotográficos, a velocidade da informação, mais pessoas fotografando etc?

Foto: Divulgação/Arfoc
Alcyr Cavalcanti (esq.) com o fotógrafo francês Yann Arthus-Bertrand: crise do capital afetou as redações

A fotografia, em especial o fotojornalismo, sofreu profundas mudanças ao longo das décadas, acompanhando as mudanças da economia, pela crise do capitalismo. Algumas profissões foram extintas, como o laboratorista, o operador de telefoto, vários jornais deixaram de circular, o que diminuiu em muito as frentes de trabalho. Passa a haver um acúmulo de funções em decorrência da chamada convergência tecnológica, e fusão de empresas e concentração da mídia em alguns grupos, causando demissões em massa. Só para dar exemplo, o Jornal do Brasil teve equipe de mais de 30 fotógrafos e O Globo mais de 50. O Dia mantém equipe mínima, embora a editora explore três jornais. Algumas agências vendem fotos a preço vil, extremamente baixo, desvalorizando o trabalho de um bom fotojornalista, que investe alguns milhares de reais em seu equipamento, e os editores aceitam porque o que interessa a eles é fechar a edição com qualquer coisa. Estão em busca do “tempo real”. A crise do capital traz em seu bojo uma série de procedimentos que mascaram a realidade em prejuízo daqueles que de fato “correm atrás da notícia”, sabem que cumprem um papel importante no registro das situações sociais do dia a dia. A fotografia muitas vezes não é mais encarada como documento histórico, a velocidade exigida na transmissão das imagens não corresponde à situação real, mas satisfaz aos veículos que querem fechar suas edições de qualquer jeito. O número de fotos sem expressão é imenso, é uma exigência da “era da velocidade”, com o beneplácito dos editores, que funcionam apenas como prepostos do patronato. Dentro desse raciocínio, qualquer coisa serve para ocupar o espaço da página. É um dos dilemas enfrentados pelo fotógrafo que ainda busca a verdade por trás das aparências. Daí a necessidade de câmeras que fazem milhares de cliques, com mecanismo ultrassofisticado. A busca pelo instante fugidio que não se repete fica em segundo plano. A decadência das agências fotográficas veio em decorrência da crise do capital, tornando as mídias em “fábricas de notícias”, visando não à informação – um bem essencial – mas somente a relação custo/benefício. Em consequência, vieram cada vez mais potentes as publicações que cobrem o dia a dia das celebridades, a vida alheia, e o desinteresse pelas “hot news” aumentando o número de paparazzi mal remunerados.

 “Algumas agências vendem fotos a preço vil, extremamente baixo, desvalorizando o trabalho de um bom fotojornalista, que investe alguns milhares de reais em seu equipamento, e os editores aceitam porque o que interessa a eles é fechar a edição com qualquer coisa”

Volta e meia se ouve falar em “fim do fotojornalismo”, um cenário bastante pessimista, por sinal. O que você pensa disso?

As novas tecnologias vieram para ficar, são inerentes à fase atual do capitalismo, mas trazem em seu bojo, infelizmente, o lado perverso que interessa aos “editores” dos departamentos fotográficos, que perderam a autonomia, e dos que chefiam as redações, e têm apenas a função de “tampar os buracos das páginas”. Eventualmente vemos ensaios fotográficos relativos a pautas de interesse dos donos das mídias, mas que trazem embutidos interesses ocultados. O fotojornalismo não morreu, está mais vivo do que nunca, mas somente na mão, na mente e na vontade de alguns verdadeiros fotojornalistas que ainda dão sua vida, sua energia pela notícia, sabendo que suas imagens ficarão para sempre, para serem julgadas pela História. Cada fotografia conta uma história, mas deve estar sempre próxima do real. Daí a responsabilidade de quem está por trás das câmeras.

Foto: Alcyr Cavalcanti

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