Desrespeito em nome da Arte
Um fotógrafo nova-iorquino deflagrou uma polêmica no início de agosto nos Estados Unidos. Arne Svenson, de 61 anos, passou os últimos meses “espionando” as atividades cotidianas de sua vizinhança em Tribeca, um bairro de Manhattan, com uma câmera munida de uma tele 500 milímetros.
Transformadas na série The Neighbors, as fotos – que, diga-se, não revelam a identidade das pessoas – foram expostas em uma galeria de arte da região. Quando os vizinhos souberam disso, acionaram o “voyeur” na justiça por violar a sua privacidade. E aqui surge a controvérsia de toda a história: a juíza da Suprema Corte de Nova York, Eileen Rakower, deu ganho de causa a Arne, com base no direito à liberdade de expressão, fundamentado na Primeira Emenda da Constituição norte-americana. O fotógrafo comemorou a decisão, mas a polêmica persiste.
E se o caso tivesse ocorrido aqui no Brasil?
O direito norte-americano em nada se compara ao brasileiro. Nossa Constituição prevê “princípios sensíveis”, ou seja, dispositivos que não podem ser alterados nem com emendas constitucionais. O artigo quinto é um deles, o que oferece proteção à imagem da pessoa humana. Por outro lado, também estabelece o direito de autor.
Em tese, ambos os princípios (intimidade e autoria) estão no mesmo patamar. Nenhum se sobressai ao outro, a menos que haja um caso concreto (real), e aí quem vai decidir qual princípio merecerá maior proteção será o juiz do caso. Ele avaliará todas as circunstâncias da discussão através do conjunto probatório, doutrina (livros de direito) e jurisprudência (julgados reais que tenham semelhança com o caso analisado).
O caso nova-iorquino apresenta ao nosso direito um conflito de princípios. A Lei de Direitos Autorais (9.610/98), que todo fotógrafo deveria conhecer, protege o autor e sua obra – nesse caso, a fotografia. Já o Código Civil brasileiro protege a vida privada. O artigo 21 estabelece que “a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.
Assim, do ponto de vista das leis, autoria e imagem estão em divergência. No entanto, apesar de fotógrafo e defensor ferrenho da classe, discordo da decisão da justiça norte-americana. Pelo menos, com base nos critérios adotados por aqui, creio que o fotógrafo perderia a ação, pois violou a intimidade de seus “modelos”.
Configura-se violação de privacidade quando: (1) a imagem não for de interesse público, (2) a pessoa fotografada não for “pessoa pública” (servidor público) no exercício de suas funções, (3) a pessoa fotografada não tiver ciência do ato fotográfico, (4) a pessoa fotografada não consentir com que seja fotografada, e (5) a fotografia não tiver cunho jornalístico.
Os vizinhos que ingressaram com a ação sentiram-se violados em sua intimidade, e com razão, pois estavam dentro de suas casas, praticando atividades informais, alheios à espionagem promovida pela teleobjetiva do fotógrafo, que de outro modo não teria obtido os enquadramentos fechados que se vê nas imagens da série (vale ressaltar que a lei brasileira condena qualquer uso tecnológico que venha a ferir a intimidade de alguém).
É importante observar ainda que não só a imagem do rosto identifica uma pessoa. Basta que o fotografado se reconheça na fotografia para fazer valer seus direitos, pois o que se protege são o sujeito e a subjetividade contida nele.
Portanto, e em que pesem as diferenças jurídicas, penso que a decisão no caso dos vizinhos de Arne Svenson tenha sido equivocada. A arte ou qualquer outra manifestação estão limitadas ao direito de outrem. A justificativa da corte até soa bem, mas é totalmente ilegal. E, para piorar, as imagens da série foram vendidas. Como o trabalho teve fim comercial, era imprescindível que o fotógrafo obtivesse autorização para isso.
Lamentavelmente, hoje em dia se atribui cada vez menos importância à individualidade. A imagem da pessoa, um bem tão precioso, se tornou algo banal, circunstância que esse episódio muito bem ilustra.
É uma pena que para se produzir uma pseudo arte, independente da tecnologia, vídeo, foto etc. alguns tenham que usar de ações polemicas acima da criatividade ou qualidade do seu trabalho. Na minha visão a fotografia é apenas um dos muitos meios de expressar suas ideias, com ou sem arte. Neste caso fica claro que o conceito de arte esta todo baseado em polemizar. Eis ai o lado podre dos conceitos da arte desconstrutora, vil e baixa.
Caro Celso, concordo com você em gênero, número e grau. Nem a estética do trabalho vale a pena ser apreciada.
Se os vizinhos ganhassem, todos os paparazzi também seriam enquadrados na mesma questão. Aliás, todos os fotógrafos jornalísticos também seriam.
Eu, particularmente, não gosto da invasão de privacidade e nunca investiria nesse tipo de arte, mas reconheço que não é uma questão simples e, talvez, a juíza tenha tomado a decisão correta (ainda mais que a identificação dos personagens é bem subjetiva).
Caro Humberto, obrigado por participar.
Quando no Direito se fala em “subjetividade”, trata-se diretamente ao sujeito que quer proteger seus direitos. O direito subjetivo é o poder conferido à vontade do titular (pessoas fotografadas) para atender única e exclusivamente aos seus interesses. Não tratamos subjetividade no sentido de abstração, isto é, cada um interpreta de uma forma. Mas sim de maneira individualizada, cujos direitos são protegidos pelo ordenamento jurídico. Já a identificação dos personagens é objetiva, basta que cada um se reconheça, para que se valha o direito deles.
Estranhamente, me incomoda mais o fato da reconhecível “inspiração” em Edward Hopper do que a questão do direito da privacidade, neste caso específico, visto que as pessoas fotografadas não tem sua identidade revelada. Claro que é um precedente que arranha alguns princípios éticos. Mas será que se a exposição tivesse outro nome – e exposta em outro lugar, outra cidade – ele teria tido a divulgação que teve?