Com as diversas técnicas de manipulação, vetorização e construção 3D disponíveis, seria natural que a imagem saltasse para um contexto híbrido, no qual a fantasia desse o tom das produções. Uma estética que tem sido abraçada especialmente pela publicidade, o que tem transformado as campanhas num verdadeiro costurar de detalhes construídos independentemente, um quebra-cabeças que envolve fotógrafos, retouchers e produtores, entre outros profissionais, mas que não é aleatório, uma vez que segue um roteiro bem definido. A imaginação pode voar (pois há muitos meios para isso), mas não se pode fugir de uma verdade fundamental: ainda se trata de fotografia.
“Tem que dosar a mão, para não ficar com cara de ilustração”, explica o carioca Fernando Filho, 43 anos de idade, fotógrafo experiente, há quinze anos atuando em estúdio. Uma foto sua, publicada no site da comunidade 500px chamou a atenção justamente por representar essa condição de obra a várias mãos e essa estética fantasiosa da fotografia publicitária (embora tenha sido feita para portfolio). Para ele, uma dinâmica de trabalho que é bem-vinda (“é importante formar um time em que todos se sintam valorizados”, diz) e uma abordagem que condiz com o seu estilo, dramático e um pouco surreal. “Posso dizer que gosto de imagens que fujam do usual”, afirma o eclético profissional, que viveu a transição para o digital e parece não ter sofrido muito para se adaptar aos novos tempos. Na entrevista que segue, ele conta um pouco mais da sua trajetória e da maneira como a fotografia publicitária tem sido feita atualmente. Acompanhe:
Você tem formação em jornalismo, o que deve explicar sua opção pela fotografia. Ou há outro motivo que o tenha levado a fotografar? Eu fiz jornalismo por causa da fotografia, ela veio primeiro. O meu pai fotografava, ele tinha uma câmera 6×9 que tenho até hoje, e eu sempre fotografava as viagens da família. Meus irmãos mais velhos trabalham com cinema e design. A partir do final dos anos 80 eu via muitos filmes de autor, era um cinéfilo que vivia indo ao cinema Estação Botafogo, que tinha perto de casa. Eu sempre fui muito observador e interessado por imagens. Daí, fiz um curso de fotografia do Senac, que acho era um dos únicos na época no Rio. Depois, já na faculdade de jornalismo, fiz um estágio em um estúdio fotográfico de um amigo do meu irmão. Porém, não durou muito e tive que sair de lá. Passou um tempo e fui trabalhar em uma produtora de vídeo e multivisão, que eram projetores de slides comandados por computador. Ali considero que foi meu início. Lá tive a oportunidade de ter contato com designers, fotógrafos e artistas, trabalhando com imagens fotográficas e vídeo. Me lembro que conheci o Gringo Cardia, Cafi, Luis Stein, Miguel Rio Branco, entre outros, que iam fazer trabalhos lá. Às vezes precisavam de algumas fotos e eu fotografava. Quando eu saí, fiz uns cursos de câmera e direção de fotografia, procurando um caminho. Vi que realmente eu gostava era de fotografia e que, se eu quisesse trabalhar com ela, teria que aprender a de still primeiro. Então, liguei para aquele estúdio que eu já tinha trabalhado antes, que era o estúdio do Aderi Costa, na Avenida Beira Mar. Trabalhei anos com o Aderi, participando de sua mudança para o Cais do Porto. Foi uma experiência muito intensa e rica porque, além de fazer os trabalhos com ele, seu estúdio era alugado por outros fotógrafos e eu tive a oportunidade de fazer muitos contatos e aprender com outros profissionais de renome daqui e de fora. Depois disso, fui trabalhar no estúdio Platinum, onde tive a oportunidade de aprender sobre fotos com manipulação e 3D integrados e ainda fotografar para o estúdio. Fiz diversas viagens para Europa e EUA a trabalho. Em umas delas, o Leonardo Vilela, dono do estúdio, não pôde ir e me confiou a tarefa de fotografar em seu lugar uma campanha para a Discovery Channel, em Nova York. Eram fotos no estúdio, em Manhattan, dos apresentadores de um programa de tevê e fotos de casas em Nova Jersey para colocar de fundo. Fiz em filme 120, 4×5 e digital, para garantir. Depois desse, tiveram muitos outros trabalhos importantes e complexos, onde aprendi bastante. Realmente foi uma experiência incrível.
Você tem um longo percurso como assistente de fotógrafo, que é uma experiência um tanto subestimada hoje em dia, o pessoal anda pulando essa etapa da formação profissional. Que importância você atribui a esse tempo em que assistiu a tantos fotógrafos? É de total importância a experiência que obtive para o meu trabalho hoje. Com ela eu aprendi muito, na prática, como fazer qualquer tipo de trabalho, conheci todos os equipamentos e todo o mercado. Você ganha dinheiro para aprender. Hoje pode não ser valorizada, mas era e continua sendo a melhor escola. Você respira fotografia. Quando comecei, a fotografia era analógica e de difícil acesso tanto a equipamentos, que eram muito mais caros e tinha de vir de fora, quanto a informação, que era dos livros e revistas. Fora os gastos com filmes, polaroides, revelação e ampliação. Eu passei justamente pela transição do analógico para o digital. Não tinha dinheiro para investir em equipamento e “virar fotógrafo”. Não tinha essa abertura de informações, cursos e fotógrafos passando toda a sua experiência e ensinando todos os seus truques. Muito pelo contrário! Hoje é tudo muito mais fácil e rápido. Na internet se aprende muita coisa. Mas também uma pessoa hoje compra uma câmera e, em pouco tempo, já se acha apta a entrar no mercado. A fotografia é uma atividade que se desenvolve muito de acordo com a pessoa, sua personalidade, é muito pessoal. Você se expõe muito. Cada um tem um tempo. Eu queria aprender sempre mais e ser o melhor assistente.
Você atua em diferentes áreas: moda, publicidade, retratos… Qual dessas você tem maior afinidade, tem mais prazer em atuar, e qual é a mais desafiadora, que exige de você um envolvimento maior? Em termos comerciais, qual a que oferece atualmente maior demanda? Aliás, que trabalhos você tem executado atualmente? Gosto muito de fazer retratos expressivos, criar luzes diferentes, contrastes, usar cores nas luzes, fazer montagens e fotos encenadas. Acho que todos os trabalhos são desafiadores, nenhuma foto é simples. Todas elas têm sua complexidade e eu procuro dar complexidade aos trabalhos. Sempre ter um algo a mais, ir além do esperado. Às vezes é um detalhe, uma luz, a direção do modelo. Os trabalhos que envolvem modelos e montagens são mais complexos e envolvem mais profissionais, são mais decisões a tomar. Gosto que todos da equipe participem. Vivemos hoje um declínio, nas fotos publicitárias, de fotos de objetos, de produtos e paisagens, devido ao aumento do uso de imagens em 3D e bancos de imagens. Logo, tem uma demanda maior em fotos de pessoas e moda, que é um mercado que vem crescendo no país. Junto com os eventos esportivos, cresce também a demanda por fotos que tenham a ver com esporte. Tenho feito de tudo um pouco, produtos, moda, retratos, fotos pessoais para portfolio. Iniciei uma parceria com o Estúdio Ícone, que faz ilustração, 3D e creative retouch. Estou começando a fazer cartaz para o cinema nacional. Também sou professor de fotografia na Miami Ad School, no Rio.
Como você define o seu estilo fotográfico e quais influências você assume na construção da sua estética? E qual percurso você recomenda a quem anda à procura da própria expressão em fotografia? Sou meio eclético, gosto de muitos tipos de fotografia. Posso dizer que gosto de imagens que fujam do usual, tenham uma certa estranheza, que chamem a atenção, que lidem com luzes diferentes, contrastes e cores. Adoro Caravaggio, por exemplo, os filmes do Wong Kar Wai, as fotos do Erwin Olaf, Alex Webb. Já a expressão pessoal só vem com o tempo, com a prática. Fotografem o que mais gostem. Estudem arte e todas as formas de imagens que puderem. Estudem as vidas dos artistas. A internet está aí. Com o tempo, vai se criando em você um determinado gosto por certas estéticas, um olhar, que acaba passando para o seu trabalho. Fotografe muito porque fotografia é prática, vivência. Tentativa e erro.
Ainda falando sobre isso, o quanto da própria expressão é possível aplicar em trabalhos comerciais como publicidade, que costumam seguir roteiros bem determinados? Isso costuma ser uma preocupação sua ou você prefere deixar a autoria para trabalhos mais pessoais? A própria expressão fica difícil, a não ser que você seja contratado pelo seu trabalho artístico, mas você pode deixar sua marca na maneira como você resolve a foto, propondo uma luz, uma direção, seu gosto estético, atenção a certos detalhes. Você tem de procurar mostrar seu ponto de vista, sua opinião no trabalho. Afinal, é um trabalho em conjunto com o diretor de arte. Mas tem que fazer sempre a opção do cliente também. Eu acho que o fotógrafo deve sempre tentar mostrar sua visão sobre o trabalho, o que ele pensa. Tem um fotógrafo que sou muito fã, o Nadav Kander, que consegue passar sua visão artística na publicidade, ele é o número um do ranking da revista Luerzer’s Archive.
E que papel tem a pós-produção em seus trabalhos? A manipulação tem sido bastante requisitada (de novo, em publicidade, entre outras), especialmente quando se quer um clima meio fantástico nos trabalhos. Você gosta desse tipo de criação (estou pensando na foto da Branca de Neve), que abre a possibilidade de uma parceria mais intensa com um manipulador digital? E gosta dessa linguagem atual, bastante baseada na manipulação? Acho que a pós é obrigatória, na medida em que toda foto é digitalizada, e fundamental nos trabalhos de hoje, mas ela deve ser um plus. Já tem que partir de uma base fotográfica bem feita. Se tiver montagem, então, a fotografia tem de ser pensada para isso. As imagens têm que ter coerência entre si em termos de luz, ponto de vista, cor, resolução. Com as ferramentas do 3D e da montagem no Photoshop, esse tipo de trabalho te dá o poder de criar qualquer tipo de imagem que você imagine. Mas tem que dosar a mão, para não ficar com cara de ilustração, tem que parecer uma foto. A parceria fotógrafo/manipulador é realmente muito importante, na medida em que um arquivo em Raw hoje pode ser qualquer coisa. É muito grande o nível de ajustes, a latitude, você pode mudar completamente a cara da imagem que foi capturada em termos de tom, contraste, cor.
É importante dizer que essa imagem, Hunger White, é um trabalho colaborativo para portfolio, não comercial, feito em parceria com o creative retoucher Milton Menezes, do Lightfarm Studios (NZ), a partir de uma ilustração do Renan Porto. O Milton me convidou para fotografar e cuidou da pós-produção, dando esse look na imagem e montando. A modelo foi feita em estúdio e aplicada no cenário. Não tem 3D, é tudo fotografia, até os ratos e baratas, que foram trazidos pela Pet Silvestre. Também fizeram parte da turma a creative retoucher Helena Lopes, mas que, desta vez, cuidou da produção, e a multitalentosa Andrea Mafer na beauty. A modelo é a Soraya Marx, que tem o blog Mistureba chic. Gosto que cada um da equipe acrescente todo o seu talento nesses trabalhos. É importante formar um time em que todos se sintam valorizados.
E o que você gosta de fotografar quando não há pressão de briefing nem nada? Desenvolve projetos autorais? Quais tem feito? Algum projeto em vista? Gosto de fazer retratos e street photography. Já fiz algumas exposições, na minha primeira individual vendi 80% das obras. Sempre procuro estar fazendo algum trabalho pessoal para portfolio com a minha turma, ideias na gaveta é que não faltam, e fotografando o tempo todo em viagens. No momento, estou focado na busca de trabalhos publicitários. Afinal, são eles que pagam as contas!