Kevin Carter e um dilema que persiste
As pessoas atualmente são submetidas a uma atordoante (anestesiante?) exposição a imagens. De todas as partes do mundo, sob os mais diferentes aspectos e temas os mais variados, a tela do computador, tablet ou smartphone – sem falar as revistas e a televisão – disparam na retina do espectador centenas de fotos diariamente. Pois tudo parece ser digno de uma fotografia – mesmo não o sendo.
No que compete ao fotojornalismo, quase nada escapa hoje em dia a um clique. Os flagrantes se multiplicam. Apesar disso, certos tabus permanecem os mesmos e ainda que um exército de paparazzi esteja a postos para expor a vida alheia, a discussão sobre o que é público e o que é privado persiste. Assim como o eterno debate acerca do que seja ou não próprio – do ponto de vista ético e até humanitário – fotografar.
No início da outra semana, o jornal New York Post causou polêmica ao publicar a foto de um homem que havia sido empurrado para os trilhos do metrô. A foto de capa mostra o homem, de 58 anos, tentando subir para a plataforma enquanto o trem se aproxima. Na manchete, a frase: “Este homem está prestes a morrer”. A foto repercutiu mal nas redes sociais, as mais vigilantes e contundentes críticas dos deslizes da mídia nos últimos tempos.
Nesse campo espinhoso no qual se procura estabelecer os limites do fotojornalismo, conciliando sua missão de informar com a premência de intervir frente a uma situação extrema, ou com o pudor de simplesmente abaixar a câmera face à agonia alheia, talvez não haja caso mais emblemático que o do fotojornalista Kevin Carter.
Carter fazia parte de um grupo de fotógrafos sul-africanos que cobriu os conflitos nas periferias de Johannesburgo nos 1990, período marcado pela libertação de Nelson Mandela e pela brutal guerra civil que se seguiu ao fim do apartheid.
O que levou aquele grupo de rapazes brancos a se embrenharem pelas ruas banhadas de sangue dos territórios negros e a fotografar a morte tão de perto é difícil dizer. O fato é que seu trabalho ajudou a abrir os olhos do mundo para o que acontecia na África do Sul. Greg Marinovich, um dos membros do grupo, conta no livro O Clube do Bangue Bangue – Instantâneos de uma Guerra Oculta (Companhia das Letras, 2002, 344 págs., R$ 61,50): “Às vezes nos sentíamos uns abutres. Pisamos em cadáveres, metafórica e literalmente, e fizemos disso nosso ganha-pão. Mas nunca matamos ninguém e, na verdade, até salvamos algumas vidas”.
O “clube” ganhou notoriedade e seus membros começaram a desenvolver uma carreira internacional. Kevin Carter, porém, vivia um período de estagnação, trabalhando num jornal de menor importância, então resolveu acompanhar o colega João Silva numa viagem ao Sudão, em março de 1993. Lá, ele fez a sua foto mais famosa – e que foi a sua maldição: a imagem de um bebê subnutrido jazendo no chão enquanto um abutre o observava a curta distância.
A foto saiu pela primeira vez no New York Times. Imediatamente após a publicação, as pessoas começaram a ligar para o jornal e a perguntar: o que aconteceu àquela criança? Kevin teria socorrido o bebê? O fotógrafo não conseguiu dar uma resposta satisfatória. Disse que a criança havia se levantado e caminhado até um posto de distribuição de alimentos que havia por perto. Não fez nada, portanto, apenas olhou.
Nancy Lee, editora de fotografia do jornal, em depoimento para o livro, disse: “Lembro que Nancy Buirski [editora internacional de fotografia] e eu nos sentimos mal. Se ele estava tão perto do centro de distribuição de alimentos e a criança estava no chão, por que, depois de tirar a foto, o que na minha opinião era importante fazer, por que não foi até lá buscar ajuda? O que se faz num caso desses? Qual é a obrigação de qualquer profissional da notícia quando se vê diante de uma tragédia? Não sei”.
A foto rendeu a Kevin (e ao Times) o cobiçado prêmio Pulitzer de fotografia. Mas naquelas alturas (abril de 1994) o fotógrafo já estava emocionalmente abalado e afundado em drogas. E à medida que a imagem se tornava mais conhecida (saía em jornais e em pôsteres de campanhas de ajuda humanitária), mais as perguntas que o atormentavam eram feitas. Segundo disse à revista American Photo na época, “essa foi a minha foto de maior sucesso, depois de dez anos como fotógrafo, mas não quero pendurá-la na parede. Eu a odeio”.
Kevin se matou inalando o monóxido de carbono do escapamento da sua picape numa quarta-feira, 27 de julho de 1994. Tinha 33 anos. “Sou perseguido por lembranças vívidas de mortes e cadáveres e raiva e dor… E sou perseguido pela perda do meu amigo Ken [Oosterbroeck, fotógrafo morto em ação no mês de abril]”, justificou na carta que deixou.
A pergunta cujo teor soou como uma sentença para Kevin Carter permanece. E não apenas correspondentes de guerra são suscetíveis a ela, mas qualquer fotógrafo que enfrente situações extremas, como os profissionais que cobrem o cotidiano violento de cidades como o Rio de Janeiro, cujo dilema está relatado no documentário Abaixando a Máquina – Ética e dor no fotojornalismo, de 2007, produzido pelo fotojornalista argentino Guillermo Planel. De modo semelhante, são obrigados a tomar decisões num piscar de olhos, de depois conviver com o peso de cada uma delas.
Greg Marinovich traduz muito bem essa delicada questão: “Tragédia e violência certamente geram imagens poderosas. É para isso que somos pagos. Mas cada uma dessas fotos tem um preço: parte da emoção, da vulnerabilidade, da empatia que nos torna humanos se perde cada vez que o obturador é disparado”.