Um relato visual sobre o afeto para além das limitações

O surto pode ocasionar o susto. A Microcefalia estabeleceu novas realidades para pais e mães que transcendem dificuldades cotidianas para a construção de uma família. Presenciei momentos únicos na vida de pessoas que tiveram que aprender a transformar seus sonhos de ter um filho.

Quando a epidemia da síndrome congênita do Zika Virus apareceu em Pernambuco como uma questão urgente de saúde pública, já havia passado o tempo: a histórica falta de investimentos na infraestrutura sanitária do Estado não poderia mais ser contornada por medidas paliativas. Mutirões do exército e campanhas publicitárias já não dariam conta de mudar a realidade. O “susto”, nesse caso, foi resultado de anos de omissão.

Dados da Secretaria de Saúde de Pernambuco confirmam 415 crianças com Microcefalia em um universo de mais de duas mil crianças com a suspeita. O Ministério da Saúde estima que mais de 81.300 pessoas estiveram infectadas pelo Zika Virus no Estado de Pernambuco no ano de 2015, porém apenas 20% buscam algum serviço médico, ou seja, 2 em cada 10 infectados, pois  a grande maioria não suspeita de um quadro clínico.

Foto: Rafael Martins

A primeira vez que estive no Hospital Oswaldo Cruz, no Recife, estava sozinho, sem repórter, com a missão de fotografar recém-nascidos com Microcefalia. Fiquei de longe observando as mães com crianças no colo, tentando reparar quais daqueles bebês teriam a síndrome. Havia uma tensão no ar; era extremamente delicado abordar aquelas mulheres. Me sentia deslocado, afinal, boa parte daquelas famílias estava buscando um diagnóstico que confirmasse ou não as suas suspeitas. Não fazia ideia, mas aquelas seriam as primeiras de muitas mães que eu iria conhecer vivendo esse drama.

Foto: Rafael Martins

De 2015 até o começo de 2017, conheci mais de trinta famílias entre o Recife e o interior dos estados do Nordeste. Muitas realidades distintas que possuem a síndrome congênita do Zika Virus como ponto em comum. Produzi retratos de mães e pais com seus filhos, acompanhei seus trajetos diários na busca por atendimentos médicos, fotografei choros, risadas, banhos, agulhadas e aniversários.

Tive oportunidade de construir imagens que ajudam a contar as histórias dessas pessoas. O melhor do fotojornalismo é o constante exercício de deslocamento de territórios, o desafio de permanecer atento, já que, muitas vezes, o extraordinário está no cotidiano.  É a porta que abre diariamente para o desconhecido.

Foto: Rafael Martins

Com o passar do tempo, pude reencontrar algumas dessas famílias e surgiu o desejo de presenteá-los com algumas fotografias. Combinei de visitá-las fora do horário comercial e produzir os ensaios em uma lógica mais pessoal, onde o sintoma da Microcefalia não fosse o foco, mas sim o afeto. São retratos de família onde o laço em comum é o encontro mágico da criança com o mundo. Esse trabalho nasceu da vontade de produzir retratos para os retratados, não fiz somente por eles, mas por mim também – esses encontros nos ajudam a mergulhar mais no outro e é somente a partir do encontro com o outro que conseguimos nos reconhecer: Somente o homem é capaz de humanizar.

Foto: Rafael Martins

Pernambuco é o estado brasileiro com a maior concentração de casos de Microcefalia e, por isso, foi escolhido por grande parte dos veículos de comunicação para a produção de reportagens. Houve uma verdadeira invasão de jornalistas em terras pernambucanas a procura de recém-nascidos. Começaram a surgir uma enorme quantidade de fotografias sobre a realidade dessas crianças.

A grande maioria destas fotografias revelam as dificuldades do contexto social vivenciado pelas famílias e dão ênfase ao encéfalo reduzido dos recém-nascidos. Qual a imagem que o fotojornalismo precisa construir sobre as crianças com Microcefalia?

Muitas vezes, é preciso evidenciar as dificuldades da rotina dessas famílias para ter acesso às unidades de saúde, moradia de qualidade, salubridade, entre outras dificuldades, para reforçar a necessidade de mudanças significativas em políticas públicas na assistência oferecida pelo poder público.

Foto: Rafael Martins

Acredito ser fundamental construir imagens pautadas no afeto para disputarem o imaginário social em torno das crianças com Microcefalia. Produzir fotografias onde o protagonismo não seja da doença, mas das crianças e de suas famílias. Narrativas que falem de suas particularidades e dos afetos em suas vidas, sem negar os desafios inerentes ao desenvolvimento,  mas que possam empoderar as pessoas envolvidas com os desafio destes sujeitos.

Foto: Rafael Martins
Foto: Rafael Martins
Foto: Rafael Martins
Foto: Rafael Martins
Foto: Rafael Martins
Foto: Rafael Martins
Foto: Rafael Martins
Foto: Rafael Martins
Foto: Rafael Martins
Foto: Rafael Martins
Foto: Rafael Martins
Foto: Rafael Martins
Foto: Rafael Martins
Foto: Rafael Martins
Foto: Rafael Martins
Foto: Rafael Martins

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4 Comentários

  1. Estão maravilhosas as fotografias que contam com a sensibilidade do autor confirmada nos textos por ele escritos.Parabens Rafael

  2. Rafa quanta leveza e amorosidade ao tratar um tema grave e não visto do ângulo do afeto. É tão necessário e importante este novo olhar.
    Beleza de fotos e texto!
    Como é bom saber desta humanidade, o coração fica contente! Só poderia ser de um olhar carinhoso… o seu.
    Parabéns primo!
    Beijo,
    Albha