“Encantados” e o fim de um ciclo

Ricardo Teles está próximo de fechar um ciclo: sua série Encantados, se tudo correr como previsto, virará livro em outubro do ano que vem, encerrando uma trilogia sobre a herança africana iniciada em 1992, com Terras de Preto. Para ele, um fecho óbvio, porém desafiador, uma vez que Teles meteu-se num caminho diversas vezes trilhado: o das festas e religiões afro-brasileiras. “Ouvi muitas críticas, inclusive de pessoas chegadas a mim”, revela. As dúvidas, porém, foram desaparecendo na medida em que o projeto foi se desenvolvendo. Está na metade, mas já obteve visibilidade em mostras internacionais e foi finalista do prestigiado prêmio da Fundação Conrado Wessel. Um esforço, no sentido de captar recursos, está sendo feito para que tenha o término que seu autor almeja.

Ricardo Teles: somos ignorantes em relação a nossas raízes (foto: Daniel Moraes)

Encantados é fruto de um interesse que surgiu em meio ao movimento nacional pela titulação das terras quilombolas, no início dos anos 1990, e que levou o fotojornalista gaúcho de 47 anos a fotografar comunidades que, como diz, vinham de séculos de invisibilidade: “A mídia na época não deu importância ao tema, mas conforme eu fui entrando em contato com as comunidades, entidades e lideranças, meu interesse não parou de crescer e resultou no livro [Terras de Preto], que foi exposto em vários locais no mundo”, destaca Ricardo, que é natural de Porto Alegre, mas vive em São Paulo desde 1986.

Sua ida à capital paulista teve caráter profissional: aos dezenove anos, chegava para ocupar vaga de comissário de bordo da Varig. Um emprego do qual não gostou desde o princípio, mas que lhe permitiu conhecer todo o Brasil, o contaminou com o desejo de viajar e o aproximou da fotografia. “Posteriormente, viajei para o exterior, onde tive acesso privilegiado a livros, exposições, equipamentos etc. No início, viajava até nas folgas e estava fascinado pela diversidade do Brasil. Chegou um momento, depois de quase oito anos, que fiquei sufocado com aquela vida. Já fotografava bastante nessa altura e, com quase trinta anos e dois filhos, resolvi sair para viver como fotógrafo profissional”.

O início foi complicado, pois foi preciso pegar o que viesse: revistas de pesca, eventos, pequenas reportagens, até finalmente chegar a um grande jornal, o Estadão. “Desde então, o fotojornalismo tem pautado meu rumo”.

Atualmente, Ricardo desenvolve trabalhos para o setor corporativo. “É um mercado instável, mas estou muito feliz nesse segmento. A remuneração é boa e, principalmente, assim como num jornal, não existe rotina”. E ainda presta serviços ao mercado editorial, colaborando com a revista National Geographic e algumas publicações do exterior. Seu trabalho autoral, do qual Encantados é fruto, responde mais a sua inquietação de fotojornalista que a demandas financeiras. Aliás, nesse aspecto, representa apenas custo, pois tudo é tocado do próprio bolso. “É muito difícil, ao mesmo tempo que essencial”, resume.

Ele também desenvolve trabalhos para o terceiro setor, de onde colhe experiências sempre muito intensas. Uma vez foi a Kinshasa, capital do Congo, cobrir o trabalho da organização brasileira Imagens da Vida, que promove oficinas de fotografia, redação e intercâmbio entre jovens: “Estávamos seguindo para o prédio do Unicef para uma reunião quando eclodiu uma guerra civil com intenso combate nas ruas. Voltamos correndo para a embaixada brasileira. Houve várias baixas no prédio do Unicef, que foi atingido por um morteiro. Era meu aniversário. À noite, os militares improvisaram um bolinho com uma vela no meio da escuridão e me entregaram um certificado do batalhão assinado por todos. Não faltou espaço para o humor brasileiro a respeito da situação que nos encontrávamos. No lado de fora, eram tiros e bombas intermitentemente que duraram ainda por uma semana. Foram mais de mil mortos naquele conflito. Nunca vou esquecer daquele dia”.

Ricardo já havia tido experiências bem menos traumáticas no continente africano, por conta do ensaio sobre os quilombos. “Desse trabalho surgiu um convite para expor em Moçambique durante o festival Photofesta, em 2002. Conheci grandes fotógrafos de lá, como Ricardo Rangel, uma referência na minha vida profissional, ou o Mauro Pinto, que chegamos a fazer um projeto juntos”.

Conheceu também um pouco da África, e se deu conta do quanto somos ignorantes em relação a esse continente tão profundamente relacionado com nossas raízes. Ricardo visitou Angola, Congo e Benin, fotografando para o projeto O Lado de Lá, a sequência do ele começou com Terras de Preto e finalizará com Encantados. Como o último, está na fila por recursos para se materializar em definitivo. Segundo o autor, apresenta os países africanos que possuem ligação com a história do Brasil sob o ponto de vista de um estrangeiro branco, porém um branco brasileiro. Ou “um mergulho na vida africana que pretende subverter os clichês que carregamos a respeito desse universo complexo que é a África”, como ele também define.

Da mesma forma, Ricardo Teles acredita que conseguiu aplicar a Encantados uma abordagem nova, capaz de despertar o interesse do público para esse aspecto da rica cultura brasileira. Enquanto o projeto segue pelo caminho tortuoso da captação de recursos, que poderá confirmar na plenitude as projeções do fotojornalista, outros trabalhos seguem em paralelo. Um que já tem seis anos conta sobre a vida às margens das estradas brasileiras e remete às experiências pessoais de Ricardo, viajante compulsivo. “Tento ficar atento ainda a outras possibilidades que se encaixem no meu tipo de fotografia e também permanecer sempre com a mente aberta a qualquer tema que possa me pareça inspirador”, afirma.

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2 Comentários

  1. Lindo trabalho, mostrando as muitas caras do Brasil …. Parabens 🙂
    Orgulho de voce! Sempre no meu coracao!!