A sombra sinistra do Condor

Foto: João Pina
Sala da EAAF (Equipe Argentina de Antropologia Forense) com caixas contendo restos de possíveis desaparecidos políticos

Faz quase trinta anos que o Brasil retomou o caminho da democracia. E, até então, havia adotado uma postura institucional de “o que passou, passou” em relação ao que ocorreu durante o regime militar. Este ano, porém, o Estado resolveu acertar as contas com o passado e instituir a sua comissão da verdade, a exemplo do que já fizeram outros países da América Latina com as suas respectivas ditaduras.

Ao dar voz ao que ecoou nos porões, a comissão tem pela frente uma ave de mau-agouro. A mesma com a qual topou João Pina, fotojornalista português que vem, por sua conta, investigando este episódio até aqui pouco conhecido dos Anos de Chumbo: a Operação Condor.

Operação Condor é o nome de um acordo firmado entre as ditaduras do Cone Sul para perseguir e eliminar opositores de um lado e outro de suas fronteiras. Iniciada em 1970 (porém formalizada em 1975) entre Chile, Argentina, Bolívia, Paraguai, Uruguai e Brasil (o Peru ingressou mais tarde), estima-se que 50 mil foram mortos e 30 mil desapareceram sob as asas da operação.

Em 1978, militares uruguaios cruzaram a fronteira clandestinamente para sequestrar um casal de compatriotas em Porto Alegre (RS). A ação foi flagrada por dois jornalistas brasileiros, e a Condor veio à tona pela primeira vez.

Foto: João Pina
Coronel Hugo Delme, acusado de crimes durante o período militar na Argentina, sendo transportado para o tribunal em Bahía Blanca

Para João Pina, ela se desenhou em 2005. “Quando estava a terminar o meu primeiro livro, Por teu livre pensamento, sobre ex-presos políticos portugueses, achei que o meu trabalho sobre a repressão política não poderia terminar com a publicação do livro. Já nessa altura trabalhava bastante na América Latina, e comecei a investigar um pouco mais sobre as ditaduras das décadas de 60 e 70 e foi quando dei de frente com a Operação Condor”, explica o português de 31 anos de idade, fotógrafo desde os dezoito e integrante do coletivo lusitano Kameraphoto.

Os avós de João integraram o partido comunista português e estiveram presos durante o regime de Salazar, a mais longa ditadura da Europa Ocidental no século 20. Essa circunstância exerceu forte influência sobre o fotógrafo, que hoje foca seu trabalho em assuntos relacionados aos direitos humanos. Após atuar longo tempo quase que exclusivamente na América Latina, João retornou à Europa para documentar a série de revoltas populares no mundo árabe. Em paralelo, tem desenvolvido o projeto Shadow of the Condor (Sombra do Condor), o qual está em fase final.

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Foto: Kameraphoto
João Pina: “Os efeitos do Condor estão ainda hoje muito presentes” (foto: Kameraphoto)

O trabalho de campo começou no final de 2005, no Recife. Depois, o fotógrafo esteve no Chile, Argentina e Uruguai, voltou ao Brasil e agora planeja retornar à Bolívia e ao Paraguai para finalizar o projeto. Nesses países, entrevistou e fotografou sobreviventes da repressão, familiares de militantes mortos ou desaparecidos e visitou antigos centros de tortura.

“Esse é o eixo central do trabalho em todos os países, e logo vou me adaptando às especificidades de cada um dos países e acompanhando-as. Por exemplo, na Argentina tenho acompanhado vários casos de lesa-humanidade que estão a ser julgados por tribunais argentinos”, diz João, cujo método é individualizar as histórias de cada uma das seis ditaduras envolvidas no Condor e verificar como cada uma se posicionou em relação à operação, e de que forma usou a repressão, a tortura e o terror de estado. Como é característico do seu trabalho, fotografou tudo em preto e branco, com filme, usando uma Hasselblad 6×6 (médio formato).

Por ser um trabalho extenso e pago do próprio bolso, ano passado João associou-se ao site de “crowd-funding” Emphas.is, que arrecada doações para projetos de fotografia documental. É dali que espera obter dinheiro para regressar ao Paraguai e Bolívia e encerrar o projeto. Feito isso, o plano é publicar o resultado em livro.

“Sinto que as pessoas que vivem na Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Uruguai e Paraguai pouco ou nada sabem sobre o que foi a Operação Condor, e ter um livro de fotografia que aborda esse tema, acho que poderia ser um pequeno contributo para dar alguma luz a esse tema”, observa o autor, que não descarta a possibilidade de expor algumas fotos, especialmente em locais emblemáticos desse período negro da recente história latino-americana.

Foto: João Pina
Antiga cela do DOPS, em São Paulo, hoje um memorial ao presos políticos no Brasil

“Os efeitos do Condor estão ainda hoje muito presentes”, acredita João. “O principal objetivo dessa operação era aniquilar a oposição política às ditaduras militares e de certo modo esse objetivo foi conseguido. Vejamos o exemplo do Brasil: demorou quase 30 anos a nomear uma comissão da verdade para investigar o que aconteceu, ainda existe um sentimento de total impunidade por parte de quem torturou, interrogou e assassinou cidadãos cujo único crime era pensar diferente de um regime militar. No Chile, continuam a haver pessoas que estão impedidas de entrar no seu próprio país, na Argentina continuam milhares de pessoas enterradas em lugares desconhecidos”, conclui o jornalista, cujo interesse na região não se esgota com Shadow of the Condor: “Continuo a trabalhar noutras frentes, em particular no Brasil – estou há vários anos a acompanhar a violência urbana relacionada com o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Seja numa favela no Rio de Janeiro, numa reserva extrativista da Amazônia ou num restaurante de luxo de São Paulo, os brasileiros têm sempre muito orgulho do seu país. É um fenômeno interessante que me interessa também explorar fotograficamente”, afirma.

Foto: João Pina
Anahit Aharonian olha pela janela da cela que ocupou na prisão de Punta de Rieles, em Montevidéu

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