A geração que começou a fotografar sob os auspícios da tecnologia digital deve achar estranho ouvir falar em filme, laboratório ou revelação em uma hora. Que diriam então das coisas que se fazia antes de aparecerem os negativos de 35 milímetros? Os sensores eletrônicos quase enterraram certas práticas de captura e impressão de imagens que remetem aos primórdios da fotografia. Eu disse quase.
Apesar das dificuldades, técnicas “vintage” ainda são praticadas por alguns abnegados e apaixonados pelas possibilidades criativas da manufatura de imagens. Pessoas que preferem manipular químicos e negativos e gastar algumas horas fazendo viragens e emulsionando placas fotossensíveis a simplesmente apontar e atirar. Pinhole, cianótipo, marrom van dyck, albumina, goma bicromatada são algumas das técnicas sob o arco da fotografia artesanal, ou alternativa, como a chamam. Todas tão velhas quanto o penúltimo século.
O advogado aposentado Fabio Giorgi, 56, faz parte dessa pequena estatística de praticantes. Seus interesses são a cianotipia, pelas possibilidades de aplicação de técnicas mistas, o papel salgado e a combinação de fotogramas e lumen prints. “Não são técnicas complicadas e nem exigem o uso de qualquer tipo de equipamento ou local especial. Basta um quarto escuro para sensibilizar os papéis, luz do sol para as exposições e água corrente”, enumera.
Fabio é carioca, mas vive em Porto Alegre (RS). Ele ingressou nesse universo de reagentes químicos por acaso: “Estava sofrendo de ‘febre digital’ e procurando na internet alguns filtros para agregar ao meu programa de edição de imagens”, conta. “Daí, aquela coisa de seguir links, eu acabei parando no site do fotógrafo dinamarquês Emil Schildt. Fotografias fantásticas. Todas feitas com algum processo alternativo. Continuei a pesquisar e fui descobrindo outros fotógrafos, comunidades, sites repletos de fórmulas e, principalmente, comecei a estudar a história da fotografia”, continua.
Segundo acredita, a internet é o melhor caminho: “Existem vários sites muito bons sobre o assunto. Participar de grupos que se dedicam à fotografia alternativa para tirar dúvidas também ajuda, porém é fundamental estudar e experimentar, muito. Esporadicamente, alguém oferece algum curso ou oficina, mas isso não é um trabalho continuado”, observa Fabio, que criou ele próprio um site para dar a sua contribuição.
Entre os que preferem fazer isso por meio de cursos, está Isabella Carnevalle. Gaúcha, 43 anos, seu contato se deu em 1998, em São Paulo, quando fez cursos sobre cianotipia e câmeras de orifício (pinhole) – “que influenciam até hoje as minhas opções”.
Em 2003, de volta a Porto Alegre, Isabella passou a ministrar oficinas sobre blueprint (cianotipia), composição e pinhole. Paralelamente, desenvolve alguns documentários e projetos artísticos, envolvendo cianótipos e câmeras de orifício.
“Era muito engraçado lá em São Paulo. Eu usava o laboratório da Neide [Jallageas] e do Paulo [Angerami, ambos professores do curso de pinhole que Isabella fez] para revelar e ampliar as imagens feitas com a câmera de orifício. A estrutura base já existia, mas tinha-se de preparar químicos, bandejas, coisas assim. Na época, eu ‘frilava’ e meu sustento era disso. Então, às vezes eu tinha acabado de montar tudo e tinha de desmontar rapidamente, pois tinha surgido um frila. Isso foi bem na época que eu trabalhava para o Valor Econômico”, lembra.
Isabella também fez algumas experiências com laboratório PB. Experiências divertidas, mas frustrantes: “Eu sou bastante detalhista e rigorosa e ficava buscando os mínimos detalhes de diferença nas exposições. Isso fazia com que eu sofresse horrores quando ia trabalhar no laboratório. Foi daí que pensei em romantizar o clima. Um dia, levei um vinho, selecionei uma estação de rádio que eu adorava, me servi de vinho e comecei a trabalhar. Ingenuamente, eu esperava ‘levitar e fazer grandes descobertas sem sofrimento’, mas nada feito! Continuo sofrendo e não gostando de laboratório, apesar de achá-lo um universo rico em possibilidades até hoje”.
Em suas oficinas, Isabella encontra pessoas de diferentes faixas-etárias. Também já ministrou para crianças. Para ela, é difícil avaliar o grau de interesse que a fotografia alternativa encontra atualmente. Talvez tenha aumentado, considera, devido ao interesse que há pela lomografia, que lida com câmeras rudimentares e filmes. “O que saberia te dizer é que todos, sem exceção, ficam encantados com o processo artesanal. O fazer através das próprias mãos, e os resultados que conseguem através dessas vivências”, ressalta, citando o depoimento de uma aluna de apenas dez anos: “I-NA-CRE-DI-TÁ-VEL (dito assim mesmo, com pausa e letras garrafais)”.
Fabio Giorgi vê o universo de praticantes extremamente reduzido. Volta e meia alguma iniciativa organizada surge, mas não obtém sequência, observa. Ele arrisca uma explicação: “O Brasil tem excelentes fotógrafos, mas nenhuma tradição de laboratório e a fotografia alternativa é basicamente um trabalho de laboratório. Além disso, por conta da facilidade que hoje existe em se fotografar e da pressa em se ver o resultado, muitos não têm a paciência para estudar um processo histórico e testá-lo até acertar. Tome como exemplo a cianotipia, que é um dos processos de impressão fotográfica mais fáceis de fazer e normalmente a porta de entrada para quem quer conhecer um pouco mais. O tempo total para se fazer uma boa impressão, entre a confecção do negativo, corte e sensibilização do papel, secagem, exposição, revelação e secagem final, é de mais ou menos 60 minutos. E esse tempo só aumenta quando passamos ao processos mais sofisticados”.
O carioca destaca ainda a questão dos químicos. A maioria é de difícil aquisição, seja pelo preço, seja porque sair por aí comprando certo tipo de química deixa algumas pessoas ressabiadas. “A primeira vez que fui comprar os reagentes para fazer uma cianotipia, o vendedor me crivou de perguntas e só se convenceu quando mostrei um printscreen de uma ciano com a descrição do processo e os reagentes necessários. Outra coisa que dificulta um pouco é o controle exercido pela Polícia Federal e o Exército sobre alguns produtos. A primeira resposta do vendedor é dizer que só com autorização, mas isso não é verdade. A autorização só é necessária para quem faz compras regulares de grandes volumes. A própria legislação de controle permite a compra eventual de pequenas quantidades. Então, cada vez que tenho que comprar alguma coisa, levo uma cópia das leis, portarias etc.”
Para quem pratica a fotografia artesanal, a compreensão do processo fotográfico e as possibilidades artísticas compensam as dificuldades. “As reações químicas, a mecânica do papel, a qualidade da luz, tudo isso tem que ser compreendido para se ter sucesso. É bem diferente da ‘caixa preta’ de um software, onde a única coisa que faço é apertar o botão do mouse e deixar que algum algoritmo faça o trabalho enquanto eu fico olhando a tela do monitor para saber se gostei ou não e, eventualmente, recomeçar até ficar satisfeito”, compara Fabio. “Cada cópia é única em função da luz do dia na qual foi feita, da forma como a emulsão foi espalhada sobre o papel, dependendo do processo escolhido, do grau de umidade do ar. Todas essas variáveis, algumas totalmente incontroláveis, emprestam à prática da fotografia alternativa um que de mistério artesanal que não se encontra no digital”, ele defende, embora utilize as duas formas de captura fotográfica em suas séries de impressão fineart, as quais comercializa.
“Não há conflito entre as duas formas. Elas se complementam. A fotografia digital não é uma nova forma de fotografar. É mais uma ferramenta que tenho ao meu dispor para mostrar a minha visão do mundo. Uma ferramenta bastante poderosa a ponto de ser utilizada para me ajudar com a fotografia alternativa. Quando se trata de fazer uma cópia positiva usando algum processo de impressão alternativo, os negativos que uso são criados a partir de fotografias feitas com equipamento digital. Não há conflito entre as tecnologias e sim, cooperação”.