Ensaio propõe à mulher: “Conhece a ti mesma”

Se há um terreno no qual a sociedade caminha com passos de curupira, é o dos direitos da mulher. Nenhum avanço obtido nos últimos anos esconde o fato de que a mulher ainda é tratada como nossos avôs gostariam que fosse. Pior do que isso: o noticiário está repleto de casos recentes de violência, física, moral, institucional, contra elas.

Tire-se como exemplo a ideia do governo de São Paulo de criar um “vagão rosa” para usuárias de trens e metrô. Uma medida para evitar o assédio sexual. “O ‘vagão rosa’ é mais uma tentativa de sujeitar os corpos femininos, ao determinar que só podem ser ‘transportados’ em sistema de segregação”, escreveu Elaine Brum em sua coluna no El País. “Uma prova de que, ainda hoje, a imagem social das mulheres difere pouco da visão medieval, em que eram compreendidas como ‘más e impuras’”, conclui a jornalista.

Visão que, inevitavelmente, contamina a própria alma feminina. Especialmente no que diz respeito aos aspectos da sua sexualidade. Essa condição parece contrariar a lógica atual de liberalidade e superexposição do corpo, seja na tevê, nas redes sociais ou na publicidade. Pois é o que ocorre, conforme constatou Alle Manzano, que há anos se dedica a fotografar o nu feminino.

Alle é fotógrafa do universo musical (DJs em especial: “Sempre tive vontade de ver eles fora daquelas pick-ups”) e faz ensaios de nu. Ela é autora de um trabalho que justamente procura discutir os tabus que envolvem a relação da mulher com seu próprio corpo.

“Muitas mulheres não se tocam, não gozam com parceiros por vergonha do seu próprio corpo, por achar que deveriam nascer como mulheres de capa de revista e de novelas, por pensar até mesmo que se tocar é pecado e que não podem fazer isso ou aquilo”, afirma a fotógrafa de 33 anos, natural de São Paulo, que aborda o tema na série Lendo-me. Sua mostra está em exposição no Bar Kabul (R. Pedro Taques, 124 – Consolação), na capital paulista, até o fim desta semana.

Fotógrafa há seis anos, Alle viu muitas moças se encolherem diante da câmera, com receio de mostrar um corpo que não era “adequado” ao padrão da moda. Mas a fotógrafa não está interessada numa improvável perfeição de formas: “Preciso de um nu limpo, sem exageros, tento mostrar o que cada mulher deveria ser por dentro e por isso utilizo elas nuas, com a leveza de como deveriam ser tratadas, seja na rua, em casa, no trabalho e na cama”, explica. Ela, porém, faz questão de frisar que não condena aquelas que “malham e saem na Playboy”.

Sua fotografia, entretanto, segue outro caminho: “Minhas imagens não exploram os seios ou a vagina da mulher, não faço um trabalho onde os homens sentem tesão na tela (esse não é o meu propósito). Diferente das fotos que todos veem em banca de jornal, não faço imagens para jogar na cara da sociedade, ‘olha aí mais uma pelada para vocês!’”, avisa. O ensaio, pelo contrário, tem por objetivo celebrar a intimidade feminina, um convite a uma jornada sensória de autoconhecimento, reforçado pelos versos do escritor Fabio Chap, cuja parceria deve perdurar para a sequência do projeto, com mais imagens e mais versos.

Enquanto isso, é preciso lidar com os tabus do dia a dia. Alle já andou sendo “enquadrada” nas redes sociais pelas fotos que publica. Sites como o Facebook não fazem distinção ao conteúdo, se artístico ou não, de imagens de certas partes do corpo nu. Tudo é julgado impróprio. O que apenas serve para reforçar o discurso da fotógrafa: “O tabu está na cabeça de cada um e quando dizem que o assunto é ultrapassado, eu pergunto: ‘Toparia ver sua mãe nua num ensaio fotográfico?’ Adivinha a resposta?”, provoca. “Nu para mim é tão comum que não vejo maldade nisso, a maldade está dentro de você, a maldade está no que você enxerga, nos seus pensamentos”, completa a fotógrafa, no momento em paz com o Facebook, “mas ainda corro o risco de cancelarem a minha conta”.