De quem é a “selfie” da macaca?

A notícia – cômica de certo modo – andou por vários jornais nesta semana: um fotógrafo britânico está brigando com a Wikipedia pela autoria da “selfie” que uma macaca fez após “roubar” seu equipamento, em 2011, na Indonésia. A foto fez um tremendo sucesso e aí está o problema: David Slater quer ter direito de cobrar pela imagem, que estampou jornais pelo mundo, e exige que a enciclopédia virtual retire a imagem de seu banco de dados. A Wikipedia se recusa, pois diz que foi o bicho quem fez a imagem, não o fotógrafo. Slater pretende levar o caso à Justiça.

Sobre esse caso de “animais artistas” eu dedico um espaço em meu livro Direito Autoral para Fotógrafos (iPhoto Editora, 2013), raciocínio que vale retomar aqui. No Brasil, a Lei de Direitos Autorais (LDA) diz que “são obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como: (…) as obras fotográficas e as produzidas por qualquer processo análogo ao da fotografia (artigo 7°)”.

A lei também define que “autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica (artigo 11)”. Disso, já se tira uma conclusão: somente a pessoa física é autora. O legislador excluiu “animais” e “pessoas jurídicas”, através da definição “criações do espírito”. Em outras palavras, somente pessoa física tem espírito. Assim, somente seres humanos são criadores de uma obra protegida – no caso em tela, da fotografia.

Vale destacar que a LDA privilegia a criatividade, ou seja, o incremento criativo de alguém. O que ocorreu no caso da macaca foi que ela “roubou” a câmera do fotógrafo e clicou. Aliás, belíssima foto!

Ora, se ela tomou-lhe o equipamento das mãos e clicou, pode ter passado tudo pela cabeça do fotógrafo naquele momento (“lá se vai a minha câmera!”, por exemplo), menos a intenção de fotografar. Sendo assim, ele jamais contribuiu criativamente. Sua única preocupação, certamente, foi reaver logo a câmera.

O que nos leva a outra questão: a propriedade do equipamento. Nenhuma lei de direito autoral no mundo trata sobre a propriedade da ferramenta usada para se criar uma obra. Uma decisão inteligente, por sinal. De outro modo, seria um caos jurídico. Imagine o escultor que perdeu sua espátula e emprestou outra de um colega. O colega que emprestou seria coautor? Do mesmo modo, se eu alugar uma câmera de médio formato para executar um trabalho, a autoria seria do proprietário da câmera? Ainda bem que não.

Pois é o que ocorre no caso da “selfie” agora famosa: Slater pleiteia a autoria da foto pelo simples fato de a câmera ser dele. Ele reclama que a viagem durante a qual conseguiu a foto foi extremamente cara e que não tem ganhado muito dinheiro com a imagem, apesar de sua enorme popularidade. Nenhum desses argumentos cola se submetidos à LDA. Trata-se de um acidente de percurso, tão somente – muito inusitado, diga-se de passagem. Conceder judicialmente a autoria ao fotógrafo seria um erro tremendo.

Certo. Então, o macaco é o autor? Já vimos que não. Animais e pessoas jurídicas não são autores de obra protegida. E a obra, como fica? É aqui que entra a exceção à regra da LDA: a foto fica sem proteção legal. É uma fotografia sem autor, não possui respaldo da legislação em vigor, pois não foi concebida/idealizada/criada/materializada por uma pessoa humana. Como o animal também não é o autor, temos um hiato de solução.

Contudo, devemos lembrar que o fotógrafo é detentor do equipamento onde estava a foto. Isso não lhe dá condição de autor, como já vimos. Slater teria, portanto, somente a posse de uma obra fotográfica que não tem amparo na LDA. Como ele já abriu mão de tal posse, compartilhando a fotografia com terceiros, qualquer pessoa pode utilizá-la.

Significa dizer que todos os direitos autorais morais e patrimoniais não se aplicam a essa obra. Sendo assim, é uma fotografia que pode ser reproduzida, comercializada, circulada, exposta e manipulada sem pedir autorização a ninguém. É uma fotografia que pode ser copiada e explorada economicamente por qualquer um, inclusive pelo dono da câmera.

(*) colaborou Alcides Mafra

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