Citada em artigo na revista Time entre os fotógrafos brasileiros do momento, autora do elogiado Mem de Sá, 100, ensaio finalista do Prêmio Conrado Wessel em 2012, foto na capa da revista francesa Les Temps Modernes sobre as manifestações no Brasil, Ana Carolina Fernandes sabe que vive seu melhor momento profissional. Fruto da experiência e da decisão de se soltar das amarras da pauta diária.
“Foram 25 anos dentro de redações, fotojornalismo diário, foi maravilhoso, mas não me vejo mais nessa situação”, diz a carioca, que na semana passada completou 51 anos de idade. Seu último emprego em jornal foi na Folha de S. Paulo, até 2008. A partir daí, passou a atuar como freelancer e a desenvolver seus projetos autorais. Mem de Sá, 100, que narra a vida de travestis da Lapa, começou aí. Ela também passou a cobrir as manifestações de rua no Rio de Janeiro. Vende as fotos para a Reuters e para jornais e revistas nacionais e estrangeiros, mas muito do que faz é de forma independente, por conta própria.
Ana também explora as possibilidades das mídias sociais. O Facebook tem sido o seu “jornal”, experiência que tem trazido agradável retorno, ainda mais tendo ela sido praticamente forçada pela irmã a aderir à rede. “Publico o que quero e da maneira que quero, com grande rapidez e uma troca e interação com os meus ‘leitores’ como jamais tive, por exemplo, trabalhando na Folha de S. Paulo, um jornal com quase, ou mais, de 500 mil leitores no domingo”. Já o Instagram se tornou uma deliciosa brincadeira, através da qual Ana pôde exercitar uma nova linguagem, a da fotografia com celular: “E também me deu uma inimaginável, imensa e gratificante exposição, e até vários prêmios. Eu sou o tipo de pessoa que deixa as minhas redes abertas, todos podem ver, comentar, gosto de responder a cada pessoa, principalmente as pessoas comuns que me procuram”, afirma a solícita fotógrafa, satisfeita por agora, longe da correria das redações, dispor de tempo para isso.
A presença no mundo virtual também serve para pôr em prática o que ela aprendeu de João Bittar: “Foto boa é foto publicada”. O grande fotógrafo paulistano foi apenas uma das influências que moldaram sua trajetória, desde o princípio direcionada à fotografia. Ana Carolina é neta de fotógrafo, de um lado, e de um proprietário de uma dubladora de filmes, de outro (“minha mãe, todo sábado, fazia sessões de cinema em casa, 16mm”). É filha de Helio Fernandes, fundador da Tribuna da Imprensa, e sobrinha de Millôr Fernandes (1923-2012), a quem a edição deste ano da Flip presta tributo.
“Eu adorava ir pra lá [para o jornal] depois do colégio. Meu tio dispensa apresentações. Acho que tudo isso contribuiu para a minha paixão por fotografia e fotojornalismo”. Pesou também a deferência de Helio pelo trabalho de Cartier-Bresson e sua amizade com outro grande fotógrafo, José Medeiros, “uma referência na minha vida e por quem tenho grande admiração”.
Há um ano, Ana acompanha as manifestações que convulsionaram o País. O interesse foi imediato, logo que surgiu o agora distante movimento do passe livre. Mas, como estava cobrindo a Copa das Confederações para a agência inglesa Action Images, ela precisou esperar. “Queria largar tudo e fotografar as manifestações. Eu tinha 19 anos nas Diretas Já (era estagiária do Globo). Quando essas manifestações começaram, me veio no coração aquela sensação de estar fazendo parte, documentando um grande momento político e social no meu país. Muitas coisas tomaram rumos inusitados, mas eu continuo com tesão de estar nas ruas documentando o que já é um momento muito importante e ver aonde isso nos levará”, destaca.
Tal como no episódio das manifestações, Ana Carolina precisou esperar o momento preciso para abraçar o projeto Mem de Sá, 100. Mas, acredita, estava destinada a contar essa história, que começou a se esboçar onze anos atrás, quando conheceu Luana Muniz, travesti com grande influência na comunidade da Lapa. “Sempre tive grande simpatia pelos travestis. A ambiguidade de dois corpos, o feminino e o masculino, na mesma pessoa, sempre me fascinou. Fora que, guardadas e apesar das diferenças sociais, sempre me considerei uma outsider. Portanto, o mundo dos excluídos, dos que vivem à margem da sociedade, nunca me assustou. Muito pelo contrário, me atrai”.
Ana estava na Folha nessa época, trabalhando “enlouquecidamente”. Qualquer outro compromisso seria impensável. Mas ela se tornou amiga de Luana, que lhe abriu as portas do casarão no endereço que dá nome ao projeto, para uma visita a qualquer hora. Depois de uns anos sem contato, as duas se reencontraram em 2010. “Fomos tomar um café e ela reiterou o convite. E mais: seria ajudado, liberado e sem censura. A única coisa que ela me pediu é que eu não fotografasse quem não quisesse aparecer. Acho isso muito correto e sempre defendi que, se a pessoa não é pública e estiver em local público, tem o direito de não querer ser fotografada”.
Luana aluga seu casarão a dezenas de travestis. Ana frequentou o local durante dois anos. Como não estava em busca do exótico, mas de uma verdade a ser mostrada com muito respeito, conquistou rapidamente a confiança delas, algo que a deixa honrada: “Sempre quis fotografar a beleza e a sensualidade dos corpos das travestis. E o cotidiano delas na vida doméstica. A rua, a prostituição ‘cliente/janela de carro’, foto ‘roubada’, pouco ou nada me interessava. Muito mais do que dar voz a um grupo excluído da sociedade, eu queria dar um corpo, sensibilizar, abrir a mente de pessoas que estão acostumadas a pensar o mundo e a sexualidade com padrões de conceito preestabelecidos e pré-julgados”.
A ideia é seguir com o projeto, apresentar outras abordagens dentro do mesmo universo. “Também gostaria de expor na Lapa e se possível até no casarão. Existe essa possibilidade”. Outros trabalhos também reivindicam sua atenção, dois novos ensaios, mas é coisa embrionária, da qual ela prefere não falar ainda. Sabido é que seu projeto sobre a Prainha, refúgio de surfistas no Rio, está bem encaminhado. “Deve virar livro em breve, tomara”. Ana fotografa o seu refúgio espiritual há quase quatro anos. “Esse não foi um projeto pensado, aconteceu. E não deixa de ser meio documental e meio jornalístico, já que a Prainha escapou de virar (mais) um resort. Os surfistas e alguns deputados do Partido Verde, na época, lutaram e conseguiram salvar esse lugar que amo demais e as minhas fotos são simplesmente uma homenagem a essa luta, aos surfistas e a Iemanjá, minha mãe, guia e protetora”.
As manifestações e a Copa do Mundo trouxeram ao Brasil diversos fotógrafos estrangeiros, muitos dos quais tentaram, com seu olhar, decifrar os enigmas desse país, alguns mirando mais as mazelas, outros a esperança, os aspectos positivos. Ótimo que haja tantos pontos de vista, na opinião dela: “Amo a frase do Ansel Adams: ‘Não fazemos uma foto apenas com uma câmera; ao ato de fotografar trazemos todos os livros que lemos, os filmes que vimos, a música que ouvimos, as pessoas que amamos’. Então, cada um que vem fotografar o imenso e contraditório Brasil, vem com uma visão própria, sempre válida, por que não? Quem daria conta de forma definitiva? Vamos formando uma colcha de retalhos, infinita e sempre mutante e mutável. Quem pode dizer o que é coerente? Eu certamente não. Que sejam todos benvindos! Profissionais, amadores, estrangeiros e estrangeiros brasileiros (como eu) neste paraíso de luzes, cores, texturas, cheiros, praias, montanhas e selvas chamado Brasil!”
Vivendo “o melhor dos mundos”, Ana Carolina celebra a maturidade, a experiência e a independência. Há poucos dias, foi chamada para trabalhar na campanha de Clarisse Garotinho. “Disse não, obrigada”. Quantos profissionais podem tomar decisões baseados em suas convicções? Para Ana, é tempo de colher. “Ao mesmo tempo que desenvolvo projetos autorais e documentais, faço freelancers, tenho tempo para flanar como uma turista na minha própria cidade ou como uma estrangeira em qualquer lugar. E ainda, pratico o fotojornalismo de uma forma independente. Sem dúvida, é um grande momento profissional e pessoal de amor à fotografia e de uma produção muito intensa e extremamente gratificante”.