A foto “o abutre e a menina” é sem dúvidas uma das imagens mais famosas e polêmicas da história da fotografia. Essa imagem impactou o mundo do fotojornalismo, chocou milhões de pessoas e mudou de forma trágica a vida do fotógrafo que a capturou. Nesse post vamos revelar toda a história por trás da foto feita pelo fotógrafo Kevin Carter.
Em março de 1993, os fotógrafos sul-africanos Kevin Carter e João Silva pousaram na aldeia de Ayod, no Sul do Sudão junto com uma missão de ajuda humanitária da Organização das Nações Unidas (ONU). Ali se concentravam cerca de 15 mil pessoas em busca de comida e fugindo dos conflitos da guerra civil. Depois de fazer várias campanhas sem sucesso para sensibilizar a opinião pública internacional e as autoridades ocidentais para o drama da fome no Sudão, a ONU decidiu ser mais agressiva na sua missão de expor ao mundo a crise humanitária no país. Então, convidou os dois fotojornalistas para registrar como a fome ameaçava a vida de milhões de pessoas e, posteriormente, sensibilizar o mundo através das fotografias.
Kevin Carter e João Silva não foram escolhidos à toa. Os dois fotojornalistas já eram, na época, internacionalmente famosos. Eles faziam parte do “Clube do Bangue-Bangue”. Um grupo de quatro fotojornalistas sul-africanos que alcançaram enorme notoriedade mundial ao cobrir conflitos raciais na África do Sul (essa história virou um filme incrível. Veja aqui como assistir).
Como foi feita a foto “o abutre e a menina”?
Em 11 março de 1993, os funcionários da ONU, mais uma vez, estavam distribuindo alimentos na região Sul do Sudão. No local, os sudaneses famintos, se atropelavam na busca desesperada para conseguir um pouco de comida. Era o momento certo para Carter e Silva registrarem fotos da situação terrível que viviam aquelas pessoas.
Naquele dia, enquanto João Silva ficou fazendo fotos de uma clínica médica, utilizada para atendimento dos casos mais graves de saúde, Kevin Carter ficou clicando os arredores do local (um Centro de Alimentação). De repente, Carter se deparou com uma cena terrível e chocante: uma criança esquelética, de mais ou menos quatro a cinco anos, estava agachada, olhando para o chão. Atrás dela, a poucos metros de distância, um abutre a observava. A criança faminta estava muito fraca e, aparentemente, buscava recuperar forças naquela posição antes de tentar continuar sua jornada até o centro de alimentação da ONU. Kevin, apontou a câmera e registrou a cena várias vezes.
Logo depois de registrar a cena, Kevin encontrou o colega João Silva e disse: “Cara, você não vai acreditar o que acabei de fotografar! Eu estava fotografando uma criança ajoelhada, aí mudei de ângulo e, de repente, havia um abutre bem atrás dela!”. Essa frase foi transcrita do livro “O Clube do Bangue-bangue“, página 157, da Cia das Letras.
Como a foto ficou conhecida em todo o mundo?
Semanas depois, em 26 de março de 1993, o jornal The New York Times fez um texto sobre a situação no Sudão e usou a foto de Kevin Carter para ilustrar a matéria e assim a imagem foi publicada pela primeira vez. A repercussão foi imensa e a foto ganhou destaque em todo o mundo. A foto foi republicada em milhares de jornais, revistas e exibida em emissoras de televisão nos quatro cantos do planeta. Desta forma, finalmente a ONU conseguiu através da fotografia sucesso em angariar grandes doações para o combate a fome no Sudão. Kevin Carter ganhou ainda mais visibilidade com a imagem e, em 1994, levou o prêmio Pulitzer, na época o mais importante do fotojornalismo mundial.
A opinião pública questiona a postura do fotógrafo
Mas o que parecia uma história de sucesso do fotógrafo Kevin Carter após captar a imagem, acabou de forma trágica. A editora do The New York Times, Nancy Buirski, revelou que logo após a foto ser publicada, as pessoas começaram a ligar para o jornal. Queriam saber o que havia acontecido com a menina após a foto. Se a criança havia sobrevivido e se o fotógrafo havia lhe ajudado.
A reação à foto foi tão forte que o New York Times publicou uma nota incomum sobre o destino da garota. Inicialmente, Kevin Carter contou que havia espantado o abutre e que sentou e chorou debaixo de uma árvore. Depois também disse que a menina se levantou e caminhou até a clínica médica onde o fotógrafo João Silva estava fotografando. Porém, a opinião pública não ficou satisfeita com as explicações da conduta de Kevin Carter. As pessoas queriam saber porque ele não tinha levado a menina para um lugar seguro.
Fotógrafos devem prestar assistência as pessoas em situações perigosas?
E assim se iniciou um grande debate sobre a atuação de jornalistas e fotojornalistas em áreas de conflito, guerra e fome. A questão central da discussão era: os fotógrafos deviam prestar assistência as pessoas em situações perigosas ou apenas cumprirem seu dever de registrar os fatos? O jornal St. Petersburg Times, da Flórida, criticou duramente a foto de Kevin Carter: “O homem ajustando suas lentes para capturar o enquadramento exato daquele sofrimento poderia muito bem ser um predador, um outro urubu na cena”.
Embora os fotógrafos do “Clube do Bangue Bangue” tivessem socorrido várias pessoas na África do Sul, os questionamentos em torno da foto do “abutre e a menina” perturbaram muito Kevin Carter. Aliado a uma série de problemas pessoais com relacionamentos amorosos malsucedidos, problemas de uso excessivo de álcool, consumo de drogas e sem dinheiro, Kevin mergulhou numa profunda depressão.
A triste morte do fotógrafo Kevin Carter
No dia 27 de julho de 1994, aos 33 anos, Kevin Carter foi até o local onde costumava brincar quando criança, em Joanesburgo, na África do Sul. Fixou com fita a ponta de uma mangueira no escapamento do seu carro (uma picape Nissan vermelha) e a outra dentro da cabine do veículo, fechou os vidros, ligou o carro, colocou a música em seu walkman e usando a mochila como travesseiro deitou-se de lado para aguardar o fim de sua vida. Kevin Carter morreu por intoxicação de monóxido de carbono quatro meses após ganhar o prêmio Pulitzer. Quando a polícia encontrou Kevin morto também encontrou uma triste nota de despedida que revelou as suas angustias:
“Eu sinto muito. A dor da vida ultrapassa a alegria ao ponto em que a alegria não existe… deprimido … sem telefone… dinheiro para o aluguel… dinheiro para sustentar as crianças… dinheiro para dívidas… dinheiro! … Estou assombrado pelas vívidas memórias de mortes e cadáveres e raiva e dor… de crianças famintas ou feridas, de loucos com dedo no gatilho, muitas vezes policiais, carrascos assassinos… Fui me juntar ao Ken (Ken Oosterbroek, seu colega fotógrafo que havia falecido há pouco tempo), se eu tiver tamanha sorte.”
Apesar de toda a polêmica em torno do papel do fotógrafo e sua conduta, o trabalho de Kevin Carter sobreviveu ao tempo. Até hoje sua foto continua sendo uma poderosa ferramenta contra a guerra e a fome no continente africano. A prova incontestável de como uma fotografia pode ajudar a construir um mundo melhor. A discussão sobre se profissionais de fotografia e jornalismo devem ajudar pessoas em situação de risco continua até os dias atuais.
Quem era a criança na foto de Kevin Carter?
Em 2011, o jornal El Mundo publicou um artigo revelando a história por trás da foto e quem era “a menina” e o seu destino após a foto de Kevin Carter. A primeira revelação importante é havia uma pulseira de plástico do posto de alimentação da ONU na mão direita da menina que aparece na foto. Na pulseira está escrito o código “T3”. A letra “T” era usado para pessoas com desnutrição grave e o número 3 indicava a ordem de chegada ao centro de alimentação. Ou seja, a criança da foto de Kevin Carter foi a terceira a chegar ao centro de alimentação e já estava recebendo ajuda da ONU. A foto de Kevin registrou ela tentando voltar novamente ao local para conseguir mais alimento.
Uma equipe voltou para a aldeia de Ayod, no Sudão, para reconstruir a história daquela fotografia e tentar descobrir quem era a criança. Depois de várias reuniões com dezenas de moradores, uma mulher que distribuía comida naquele lugar, chamada Mary Nyaluak, lembrou o destino da criança e revelou: “Ele é um menino e não uma menina. O nome dele é Kong Nyong e mora fora da aldeia”. Com essa pista, dois dias depois, a equipe chegou à família do menino. O pai confirmou que a criança da foto de Kevin Carter era seu filho e que se recuperou da desnutrição e sobreviveu. O pai também disse que Kong morreu já adulto em 2006, devido a uma forte febre. Essa é a história por trás da foto.
Leia aqui neste link outros textos da série “A história por trás da foto”.